APRESENTAÇÃO
Os grupos étnicos conhecidos como “comunidades remanescentes de quilombos”, “quilombolas” ou “comunidades negras rurais” são constituídos pelos descendentes dos escravos negros que, no processo de resistência à escravidão, originaram grupos sociais que se autodefinem a partir das relações com a terra, o parentesco, o território, a ancestralidade, as tradições e práticas culturais próprias.
A Política Estadual dos Recursos Hídricos, instituída pela Lei no 14.844/2010, assim como o Sistema Integrado de Gestão dos Recursos Hídricos do Ceará-SIGERH, estabelece em seu artigo 47, capítulo VII, onde trata da composição dos Comitês de Bacias Hidrográficas, que “Nos Comitês de Bacias Hidrográficas cujos territórios abranjam terras indígenas e de quilombolas deve ser incluído um representante de cada um desses segmentos.” Desta forma, no ano de 2017 foi iniciado um trabalho de identificação das Comunidades Quilombolas existentes na região compreendida pela Sub-Bacia Hidrográfica do Alto Jaguaribe. O objetivo do trabalho consiste na inserção dessas comunidades no processo de gestão participativa dos recursos hídricos do Ceará, conforme preconiza a Política Estadual dos Recursos Hídricos.

METODOLOGIA
Inicialmente foi realizado um levantamento de dados sobre as comunidades Quilombolas existentes na bacia do Alto Jaguaribe nos sítios eletrônicos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária-INCRA e da Fundação Cultural Palmares-FCP. A FCP foi a primeira instituição pública voltada para promoção e preservação da arte e da cultura afro-brasileira, criada por meio da Lei Federal no 7.668/1988 e vinculada ao Ministério da Cultura, onde uma de suas responsabilidades é emitir o certificado de autorreconhecimento das comunidades remanescentes de Quilombos. No ano de 2003 foi publicado o Decreto Federal no 4.887, atribuindo competência ao INCRA para delimitar as terras dos remanescentes de quilombos, bem como a determinação de suas demarcações e titulações, além de conceder aos quilombolas o direito à autoatribuição como único critério para identificação das suas comunidades.

Como forma de delimitar o objeto deste trabalho foi utilizado um critério para escolha das comunidades, e foram visitadas somente as que possuem a certificação pela FCP. Para a coleta de dados, além da pesquisa na internet, foram realizadas visitas in loco, onde foram contatados os presidentes das associações locais e/ou líderes comunitários. Os trabalhos para identificação e diagnóstico das comunidades Quilombolas na região hidrográfica do Alto Jaguaribe foram realizados pelo Núcleo de Gestão da gerência regional da COGERH de Iguatu, por meio da coordenadora Hewelânya Uchôa, a analista em gestão de recursos hídricos Isabel Cavalcante e o técnico de gestão Gutemberg Fernandes. As visitas técnicas nas comunidades foram realizadas no decorrer dos anos de 2017 e 2018.

RESULTADOS
Após o levantamento das informações e visitas às comunidades foi possível identificar seis comunidades remanescentes de Quilombos na Sub-Bacia Hidrográfica do Alto Jaguaribe. Como já mencionado, todas as comunidades visitadas possuem a certificação da FCP e somente uma delas possui o título da terra, expedido pelo INCRA, conforme a relação abaixo:

Tabela 1: Comunidades Quilombolas da Sub-Bacia Hidrográfica do Alto Jaguaribe

COMUNIDADE

MUNICÍPIO

PROCESSO FCP

Nº PORTARIA/DATA DOU

1

Consciência Negra

Tauá-CE

01420.001848/2006-71

Nº 29/2006 – 13/12/2006

2

Sítio Arruda*

Araripe-CE

01420.000044/2009-06

Nº 43/2009 – 05/05/2009

3

Serra dos Chagas

Salitre-CE

01420.003507/2008-01

Nº 59/2010 – 28/04/2010

4

Renascer Lagoa dos Crioulos

Salitre-CE

01420.009890/2011-06

Nº 195/2011 – 01/12/2011

5

N. Senhora das Graças do Sitio Arapuca

Salitre-CE

01420.001980/2013-11

Nº 109/2013 – 30/07/2013

6

Sítio Carcará

Potengi-CE

01420.001979/2013-88

Fonte: http://www.palmares.gov.br/sites/mapa/crqs-estados/crqs-ce.pdf. Acesso em 04 de outubro de 2018.

* No ano de 2015 o INCRA recebeu a posse dos imóveis rurais que assegura a regularização fundiária em
benefício das famílias remanescentes de quilombos do Sítio Arruda. Atualmente a comunidade possui a
concessão de uso da terra e aguarda o título definitivo de domínio coletivo do território.

1. Comunidade Quilombola Consciência Negra
A comunidade Quilombola Consciência Negra fica localizada no bairro Nova Aldeota, no município de Tauá, e as informações aqui registradas foram repassadas pela presidente da associação comunitária, Ana Cássia Ferreira Firmo. A comunidade possui certificado de remanescente de Quilombo expedida pela FCP através da Portaria no 29, de 12 de dezembro de 2006, publicado no Diário Oficial da União em 13 de dezembro de 2006.
A comunidade Consciência Negra é a única da Bacia do Alto Jaguaribe que fica localizada na zona urbana de um município. Segundo Ana Cássia, ao todo, são 20 famílias que se reconhecem como remanescentes de Quilombos e residem no mesmo bairro. O bairro está ligado à rede de abastecimento de água da CAGECE e a distribuição é regular, embora o valor da taxa cobrado é considerado alto para o poder aquisitivo das famílias do local. Nas proximidades existem escolas, quadra esportiva, uma Unidade de Pronto Atendimento-UPA, Igreja e comercio. A principal data comemorada na comunidade é a Semana da Consciência Negra e o principal problema ambiental relatado foi a falta de esgotamento sanitário no bairro.
Ana Cassia afirmou que as famílias migraram para a zona urbana após serem expulsas por duas vezes das terras onde residiam, na década de 1970. No primeiro episódio foram obrigados a saírem das margens do açude federal Várzea do Boi, devido à construção do perímetro irrigado. As famílias então se instalaram em outro local e mais tarde tiveram de desocupar a área devido à construção da BR 020. Nesse período foram acolhidos em um terreno, distante do centro da cidade de Tauá, onde constituíram morada e seus mais recentes vínculos. Ana Cássia assegurou não haver resistência das famílias em se reconhecerem como descendentes de Quilombolas e não identificou nenhum conflito em sua comunidade.

2. Comunidade Quilombola Sítio Arruda
A comunidade Quilombola do Sítio Arruda fica localizada na zona rural do município de Araripe e as informações sobre o local foram repassadas pelo Sr. Antônio da Silva Cruz, presidente da Associação Quilombola do Sítio Arruda. A comunidade possui certificado de remanescente de Quilombo expedida pela FCP através da Portaria no 43, de 29 de abril de 2009, publicada no Diário Oficial da União em 05 de maio de 2009.
Na comunidade residem 45 famílias e a principal fonte de abastecimento são as cisternas, atendidas por um carro pipa da Defesa Civil do município de Araripe, cujo principal uso é o consumo humano. A água para a dessedentação dos animais e para as atividades domésticas é captada em um poço localizado em Salitre, município fronteiriço. A principal atividade produtiva da comunidade é a agricultura de sequeiro, onde os moradores fazem o plantio de milho, feijão e mandioca no período chuvoso.
A ausência de uma fonte hídrica segura e adequada na própria comunidade é o maior problema apontado pelo Sr. Antônio, pois limita o potencial produtivo da comunidade e dificulta a criação de animais. No Sítio Arruda está sendo construída uma escola padrão do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação-FNDE, com quatro salas de aula. A Comunidade foi contemplada, também, com o Projeto Paulo Freire onde cada família deverá receber 4 cabeças de caprino, visando fomentar a produção e renda dos moradores.
Segundo informações do INCRA, a comunidade é formada a partir de três famílias negras, originadas de escravos vindos de Cabrobró-PE, e das regiões da Chapada do Araripe e dos Inhamuns, no Ceará. A comunidade migrou para o Sítio Arruda na década de 1980 e foi a primeira comunidade Quilombola do Ceará a receber a Concessão de Direito Real de Uso pelo INCRA, no ano de 2016, que autoriza legalmente o uso das terras pelos moradores.

3. Comunidade Quilombola Serra dos Chagas
A comunidade Quilombola Serra dos Chagas localiza-se no município de Salitre e as informações sobre o local foram coletadas com o presidente da associação comunitária, Sr. João Damião Nascimento. A comunidade possui certificado de remanescente de Quilombo expedido pela FCP através da Portaria no 59, de 27 de abril de 2010, publicada no Diário Oficial da União em 28 de abril de 2010.
No local residem 32 famílias e existe grande dificuldade hídrica, pois todas as residências são abastecidas por cisternas atendidas por carros-pipa. Para o presidente da associação local, os principais problemas da comunidade são a escassez hídrica, as queimadas e o lixo, que não possui destinação adequada. O principal conflito existente é pela posse da terra. A principal atividade produtiva é a agricultura, com destaque para cultivo e o manuseio da mandioca na casa de farinha. Os principais eventos são religiosos, com festejos à São João e à Semana Santa. As principais instituições que atuam em parceria com a comunidade são o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Salitre e a Empresa de Assistência Técnica e Rural do Ceará-EMATERCE.
De acordo com o site do INCRA a comunidade é formada por quatro famílias negras tradicionais da região da Serra do Araripe. Na origem das famílias está a presença de patriarcas negros, descendentes de escravos, que migraram do município de Araripina-PE, no período entre o final do século XIX e a década de 1940, para fixar moradia e constituir família na Serra dos Chagas em Salitre-CE.

4. Comunidade Quilombola Renascer Lagoa dos Crioulos
A comunidade Quilombola Renascer Lagoa dos Crioulos localiza-se na zona rural do município de Salitre e as informações foram obtidas com a líder comunitária, Sra. Silvana Terezinha da Silva. A comunidade possui certificado de remanescente de Quilombo expedido pela FCP através da Portaria no 195, de 29 de novembro de 2011, publicada no Diário Oficial da União em 01 de dezembro de 2011.
A comunidade possui 326 famílias e a principal fonte hídrica do local é um reservatório denominado Barreiro Velho que se encontra, atualmente, vazio, motivo pelo qual o abastecimento da comunidade está ocorrendo por meio de carros pipa da Defesa Civil do município, onde a água distribuída advém do Estado de Pernambuco. Nos anos de 2005 e 2006 a comunidade foi abastecida pelos poços profundos PP1, PP4 e PP5, localizados no município de Araripe, porém, o abastecimento foi interrompido devido a problemas técnicos, fato lamentado pelos usuários que
almejam a retomada do abastecimento pelos referidos poços. No local, aproximadamente 80% das residências foram contempladas com cisternas de placa do programa do Governo Federal em 2014 e 2015, o que minimiza o sofrimento no período de estiagem. A principal atividade econômica é a agricultura com destaque para os plantios de mandioca.
Na comunidade não existe saneamento básico nem coleta de lixo. Conforme a líder comunitária, no organograma do município de Salitre a comunidade não está inserida como Quilombola, por isso há dificuldades na obtenção de recursos e execução de programas e projetos sociais. O principal conflito vivenciado na comunidade é pela posse da terra, seguido da falta do autorreconhecimento das pessoas enquanto descendentes de Quilombolas.
Os equipamentos sociais da comunidade são uma Casa de Farinha, Creche, Escola de Ensino Fundamental, Programa Saúde da Família-PSF, Centro de Referência da Assistência Social-CRAS. Igreja Católica e Evangélica, Clube, Padaria e Supermercado. O principal evento da Comunidade é de cunho religioso e acontece sempre no dia 13 de maio, onde se prestam homenagens à Mãe Aparecida dos Crioulos. As principais instituições que atuam em parceria na localidade são a Cáritas Diocesana, o Serviço Social do Comércio-SESC, o Grupo de Valorização Negra do Cariri (GRUNEC), o Instituto do Desenvolvimento Agrário do Ceará-IDACE, a Secretaria Municipal de Assistência Social e o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Salitre.

5. Comunidade Quilombola Nossa Senhora das Graças do Sítio Arapuca
A comunidade Quilombola Nossa Senhora das Graças do Sítio Arapuca localiza-se na zona rural do município de Salitre e as informações sobre o local foram repassadas pela Agente de Saúde, Sra. Maria do Socorro Nascimento. A comunidade possui certificado de remanescente de Quilombo, expedida pela FCP através da Portaria no 109, de 26 de julho de 2013, publicado no Diário Oficial da União em 30 de julho de 2013.
Na comunidade residem 40 famílias e a principal fonte de abastecimento local é um poço profundo, que possui dessalinizador e opera com uma vazão média de 1.000 litros por hora. Atualmente, está sendo perfurado um segundo poço com possibilidade de ser gerenciado pelo Sistema Integrado de Saneamento Rural-SISAR. Na comunidade existem alguns açudes particulares de pequeno porte utilizados para lazer, pesca e dessedentação animal.
A comunidade Nossa Senhora das Graças do Sítio Arapuca dispõe de uma assessoria ambiental, com acompanhamento técnico do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola- FIDA. A principal atividade econômica é a agricultura e o maior conflito existente é pela posse da terra. Os eventos comemorados na localidade são de cunho religioso, como o novenário mariano, a festa da padroeira Santa Luzia e o natal partilhado, e culturais, como a festa junina. As principais instituições que atuam em parceria com a comunidade são a Secretaria Municipal de Saúde, o Instituto Nacional de Reforma Agrária-INCRA e o FIDA, acima mencionado.

6. Comunidade Quilombola Sítio Carcará
A comunidade Quilombola Sítio Carcará localiza-se na zona rural do município de Potengi e as informações coletadas foram repassadas pelo presidente da Associação dos Remanescentes de Quilombolas do Sítio Carcará-ARQUICARÁ, Sr. Sebastião Vieira da Silva. A comunidade possui certificado de remanescente de Quilombo, expedida pela FCP através da Portaria no 109, de 26 de julho de 2013, publicado no Diário Oficial da União em 30 de julho de 2013.
Os moradores da comunidade descendem de escravos fugidos da Fazenda Inficado, no município de Assaré, antiga propriedade do Barão de Aquiraz. Segundo o Sr. Sebastião, a comunidade existe há mais de 300 anos e possui 118 famílias. A principal fonte hídrica de abastecimento local é um poço profundo, atualmente gerenciado pelo Sistema Integrado de Saneamento Rural-SISAR. Além do poço existem 5 açudes de pequeno porte, identificados por açude do Miltinho, açude do Humberto, açude do Valter, açude do Tonico e a barragem dos Alves. Os reservatórios são barrados pelo rio da Volta e, devido a escassez hídrica, encontram-se vazios. Na localidade existe, também, um Olho D’água que recebe o mesmo nome da comunidade e que, segundo o presidente da Associação, nunca secou.
A principal atividade econômica do local é a agricultura. O desmatamento e as queimadas foram citados como os principais problemas ambientais e a demarcação de território, como o maior conflito existente. As instituições que atuam em parceria com a comunidade são o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Potengi, a Cáritas Diocesana, a Empresa de Assistência Técnica e Rural do Ceará-EMATERCE e a Secretaria Municipal de Agricultura. O dia da Consciência Negra é o principal festejo cultural da comunidade somado à dança do Toré, ao Toque de Pifi e a Ciranda de Roda, entre outros projetos e programas locais. Na comunidade existe uma rádio com cornetas, denominada de Rádio Barracão Cultural e possui, também, uma casa de sementes.

CONCLUSÃO
Não foi encontrado registro sobre a quantidade de comunidades remanescentes de Quilombos existem na Sub-Bacia Hidrográfica do Alto Jaguaribe. No site da FCP estão registradas apenas as comunidades certificadas, mas existem aquelas que estão com processo em andamento e as comunidades que não procuraram a regularização. De acordo com o site do INCRA, até o momento, no Estado do Ceará, nenhuma comunidade quilombola conseguiu a titularidade de seu território, embora algumas delas estejam com o processo mais próximo da finalização, como a
comunidade Sítio Arruda, em Araripe-CE.
No trabalho de identificação das comunidades Quilombolas na Sub-Bacia Hidrográfica do Alto Jaguaribe foram visitadas somente as seis comunidades que possuem a certificação da FCP, como mencionado anteriormente. Entretanto, existem outras comunidades que se reconhecem como descendentes de Quilombos na bacia, como a comunidade de Serra dos Paulos, em Parambu, que iniciou o processo para certificação mas ainda não foi aprovado e portanto, não foi inserida neste trabalho.
Embora tenham alcançado muitas conquistas nos últimos anos, pode-se perceber que as comunidades quilombolas têm um longo caminho pela frente, na luta por reconhecimento e garantia de direitos. Nesse sentido, o processo de identificação e as visitas realizadas nas comunidades quilombolas da Sub-Bacia Hidrográfica do Alto Jaguaribe consiste em assegurar à estas populações a participação no processo de gestão dos recursos hídricos, como direito garantido na Política Estadual dos Recursos Hídricos. Nos registros anteriores é possível perceber que a maioria das comunidades visitadas possuem dificuldades relacionadas ao abastecimento local, inclusive para o consumo humano. Tal fato reforça a necessidade dessas comunidades estarem inseridas no processo de gestão das águas, como forma de assegurar seus direitos e fortalecer a participação dos diversos segmentos e representações sociais da bacia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Almeida. J. G.; Araújo, C. R. S. Estudo de caso sobre a Comunidade Quilombola de Carcará, Potengi, Ceará, Brasil. VIII Simpósio Internacional de Geografia Agrária. Curitiba, 1 a 5 de novembro de 2017.

Fundação Cultural Palmares-FCP. Disponível em: <http://www.palmares.gov.br/ >

GASPAR, L. Quilombolas. Bibliotecária da Fundação Joaquim Nabuco. Disponível em:
<http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php?
option=com_content&view=article&id=857:quilombolas&catid=51:letra-q>

Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária-INCRA. Disponível em: <http://www.incra.gov.br/quilombola >