A MEDIAÇÃO DE CONFLITOS NA GESTÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS: UM ESTUDO SOBRE O COMITÊ DA SUB-BACIA HIDROGRÁFICA DO ALTO JAGUARIBE
Isabel Cavalcante do Amaral¹
Clarissa Dantas Moretz-sohn²
Ana Carênina de Albuquerque Ximenes³
RESUMO
O Ceará foi um dos estados pioneiros na publicação de uma Política específica sobre os recursos hídricos e na criação de um Sistema Integrado de Gestão de Recursos Hídricos, possuindo um arcabouço institucional bem definido. Devido às suas características peculiares de semiaridez, com baixos e irregulares índices pluviométricos, foi necessária uma adaptação à sua legislação, instituindo a Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos-COGERH, que possui atribuições de regulamentação e gerenciamento dos recursos hídricos de todas as bacias hidrográficas do Estado. O modelo adotado estabelece uma gestão descentralizada, integrada e conta com a participação da sociedade nos processos decisórios, por meio da criação de instâncias participativas, como os Comitês de Bacias Hidrográficas. Estes, por sua vez, consistem em espaços abertos de negociação com representação da sociedade civil, dos usuários de água e do poder público, com atribuições consultivas e deliberativas, sendo, também, responsáveis pela administração, em primeira instância, dos conflitos relacionados aos recursos hídricos da bacia correspondente. Apesar dos avanços e da abertura à participação da sociedade, os conflitos socioambientais pelo uso da água ainda são recorrentes e tendem a se agravar em momentos de escassez hídrica. Deste modo, esta pesquisa objetiva identificar os desafios e as perspectivas do Comitê da Sub-Bacia Hidrográfica do Alto Jaguaribe-CSBHAJ na mediação de conflitos socioambientais relacionados ao uso dos recursos hídricos, buscando compreender os fatores que favorecem e/ou dificultam essa atuação. Para atingir o objetivo proposto são realizadas entrevistas semiestruturadas com membros do colegiado, que acompanham o processo desde o início de sua formação. Por meio das entrevistas é possível verificar que a atuação do CSBHAJ ainda enfrenta desafios, principalmente relacionados à participação, como a falta de apoio e de recursos para as instituições membros frequentarem as reuniões, a dependência do colegiado às instituições governamentais executoras da política e a influência do governo em suas deliberações. Por fim, são relacionadas algumas perspectivas e ações que podem fortalecer a atuação do CSBHAJ, legitimando assim, os princípios norteadores legais, principalmente a participação da sociedade na tomada de decisões relacionadas aos recursos hídricos.
Palavras-chave: Recursos hídricos, comitês de bacias hidrográficas, conflitos.
ABSTRACT
Ceará was one of the pioneer states in the publication of a specific Policy on water resources and in the creation of an Integrated Water Resources Management System, with a well defined institutional framework. Due to its characteristic semiarid characteristics, with low and irregular rainfall levels, it was necessary to adapt to its legislation, establishing the Water Resources Management Company – COGERH, which has regulatory and water resources management responsibilities for all hydrographic basins in the State. The adopted model establishes a decentralized, integrated management and counts on the participation of the society in the decision-making processes, through the creation of participative instances, such as the Committees of Hydrographic Basins. These, in turn, consist of open negotiation spaces with representation from civil society, water users and the public power, with advisory and deliberative attributions, being also responsible for the administration, in the first instance, of resource-related conflicts Corresponding basin. Despite advances and openness to society’s participation, conflicts over water use are still recurrent and are likely to worsen in times of water scarcity. Thus, this research aims to identify the challenges and perspectives of the Upper Jaguaribe-CSBHAJ Hydrographic Sub-Basin Committee in the mediation of conflicts related to the use of water resources, seeking to understand the factors that favor and / or hinder this performance. In order to achieve the proposed objective, semi-structured interviews are carried out with members of the collegial team, who follow the process from the beginning of their formation. Through the interviews it is possible to verify that the CSBHAJ’s performance still faces challenges, mainly related to participation, such as the lack of support and resources for member institutions to attend meetings, the dependence of the collegiate on the governmental institutions executing the policy and the influence Of the government in its deliberations. Finally, some perspectives and actions are related that can strengthen the CSBHAJ’s performance, thus legitimating, the legal guiding principles, mainly the participation of the society in the decision making related to water resources.
Keywords: Water resources, watershed committees, conflicts.
INTRODUÇÃO
A água consiste no insumo fundamental à manutenção da existência dos seres vivos e ao desenvolvimento das sociedades. O suprimento de água doce de boa qualidade é, portanto, essencial para o desenvolvimento econômico, para a qualidade de vida das populações humanas e para a sustentabilidade do planeta (TUNDISI, 2003).
O acelerado crescimento populacional somado ao intenso desenvolvimento tecnológico vem aumentando imensamente a demanda pela água, que já se apresenta como elemento raro em algumas regiões do planeta. Como consequência da redução da disponibilidade hídrica tem-se o agravamento da disputa pela água por seus usuários, incluindo a agricultura, a manutenção de ecossistemas, os assentamentos humanos, a indústria e a produção de energia. De acordo com dados da Agência Nacional de Águas-ANA (2002):
A atual pressão sobre os recursos hídricos resulta do crescimento populacional e econômico, traduzindo-se nas expressivas taxas de urbanização verificadas nos últimos anos e aliando-se à ocorrência de cheias e secas e à degradação do meio ambiente hídrico, que atingem cada vez maiores contingentes populacionais (ANA, 2002, p. 11).
Ainda segundo dados da ANA (2014), o Brasil possui 13% da água doce superficial disponível no mundo, contudo, sua distribuição possui assimetrias, visto que 81% do total se encontra na região amazônica onde está o menor contingente populacional, cerca de 5% da população brasileira e a menor demanda. Nas regiões hidrográficas banhadas pelo Oceano Atlântico, que concentram 45,5% da população do País, estão disponíveis apenas 2,7% dos recursos hídricos do Brasil.
Segundo Teixeira (2004), o Estado do Ceará possui a quase totalidade do seu território, uma área de 148.826 km², inserido no semiárido do Nordeste brasileiro e possui condições físicas e socioeconômicas que o tornam uma região única, na qual se destacam três características decisivas na justificativa de sua vulnerabilidade hídrica.
A primeira está relacionada ao seu clima semiárido, caracterizado por um regime pluviométrico variável e um déficit hídrico anual, com uma média anual de precipitações de, aproximadamente, 800 mm, e uma média de evaporação de mais de 2.000 mm por ano. A segunda característica se refere à intermitência dos rios e à limitação na disponibilidade de recursos hídricos subterrâneos, decorrentes da geologia onde predomina o embasamento cristalino coberto por solos rasos. E o terceiro aspecto está associado ao percentual de população rural distribuída de forma difusa no território, dificultando o seu abastecimento através de sistemas hídricos economicamente viáveis e sustentáveis sob a ótica hidrológica.
Nas últimas décadas o Estado do Ceará registrou avanços na gestão dos recursos hídricos, principalmente com a criação da Lei nº 11.996/92, que instituiu a Política Estadual dos Recursos Hídricos e criou o Sistema Integrado de Gestão de Recursos Hídricos, estabelecendo a Secretaria de Recursos Hídricos como organismo coordenador da política e instituindo três vinculadas hierárquicas: a Superintendência de Obras Hidráulicas, na qualidade de órgão executor das obras hidráulicas, a Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos, como entidade gerenciadora dos recursos hídricos e a Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos, responsável pelo monitoramento climático e pela pesquisa e estudos aplicados em recursos hídricos e meio ambiente.
O modelo institucional empreendido pelo Estado nos últimos anos possibilitou avanços reconhecidos não apenas pela sociedade cearense, mas também por organizações e especialistas em nível nacional e internacional (TEIXEIRA, 2004). O modelo proposto adota a bacia hidrográfica como unidade de gerenciamento e pressupõe uma gestão integrada, descentralizada, que abre espaço para a participação da sociedade no processo decisório, por meio da criação de órgãos colegiados como os Comitês de Bacias Hidrográficas-CBHs.
Os CBHs, por sua vez, consistem em instrumentos de participação da sociedade na gestão de recursos hídricos, possuindo como atribuições mais relevantes, o estabelecimento de um conjunto de mecanismos e regras decididas coletivamente, de forma que os diferentes interesses sobre os usos da água na bacia sejam discutidos e negociados democraticamente em ambiente público, com transparência no processo decisório, com vistas a prevenção e diminuição de conflitos.
Embora o gerenciamento dos recursos hídricos esteja condicionado a um sistema institucional organizado e a uma legislação atinente ao assunto, os fatores climáticos inerentes ao Estado associados à finitude do elemento água na natureza em sua forma apropriada para o consumo, criam um ambiente de incertezas com relação à oferta hídrica, propiciando o surgimento de conflitos.
A água, que é fonte de vida e geradora de desenvolvimento social e econômico, continua a ser elemento central de disputas, veladas ou não, onde se duelam os interesses antagônicos dos diversos setores da sociedade, com a ocorrência recorrente de conflitos agravados em cenários de escassez.
Diante do exposto, o presente trabalho pretende identificar os desafios e as perspectivas do Comitê da Sub-Bacia Hidrográfica do Alto Jaguaribe-CSBHAJ na mediação de conflitos socioambientais ocorridos no âmbito da Bacia, considerada a maior região hidrográfica do Estado do Ceará. Não se pretende com isso traçar um método para solucionar os conflitos, dada à heterogeneidade dos atores sociais envolvidos, assim como a dinamicidade das relações que se processam no cotidiano. Mas, sim, pretende-se identificar as perspectivas que podem auxiliar a mediação de conflitos pelo Comitê de Bacia, com base no entendimento de que esse espaço representa a arena política de negociação, constituindo-se o papel central da gestão participativa dos recursos hídricos.
METODOLOGIA
Caracterização da pesquisa
O trabalho se constitui uma pesquisa de natureza qualitativa e descritiva, visto que se refere a aspectos da realidade que não podem ser quantificados, centrando-se na compreensão e explicação da dinâmica das relações sociais. Para Minayo (2001, p. 21-22), “[…] a pesquisa qualitativa trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis”.
Quanto aos métodos de procedimento, a pesquisa adota o método histórico, conforme classificação de Marconi e Lakatos (2003, p. 106-108). O método histórico consiste em investigar acontecimentos e processos do passado analisando sua influência na sociedade atual, influenciados pelo contexto cultural de cada época.
Quanto aos objetivos a pesquisa pode ser caracterizada como exploratória e explicativa. Para Gil (2002, p. 41-42), a pesquisa exploratória “[…] tem como objetivo proporcionar maior familiaridade com o problema, com vistas a torná-lo mais explícito […]” e a pesquisa explicativa preocupa-se em “[…] identificar os fatores que determinam ou que contribuem para a ocorrência dos fenômenos”.
Quanto aos procedimentos adotados, foi realizada uma pesquisa bibliográfica e documental baseada em autores nacionais relacionados com o tema, além da consulta em sites de órgãos federais e estaduais diretamente envolvidos na problemática, teses, dissertações e monografias, artigos científicos, atas de reuniões ordinárias e extraordinárias do CSBHAJ, assim como outros registros documentais arquivados na secretaria executiva do colegiado.
O objetivo foi construir uma fundamentação teórica de modo a oferecer elementos para a compreensão do atual modelo de gestão dos recursos hídricos no Ceará e, em particular, às questões relacionadas aos conflitos pelo uso e apropriação da água, no âmbito da bacia do Alto Jaguaribe.
Para a coleta de dados foram, também, criados roteiros semiestruturados para a aplicação de entrevistas (Anexo 1) contendo perguntas para atingir o objetivo da pesquisa. Para Triviños, a entrevista semiestruturada “[…] favorece não só a descrição dos fenômenos sociais, mas também sua explicação e a compreensão de sua totalidade […]” além de manter a presença consciente e atuante do pesquisador no processo de coleta de informações (1987, p. 152).
As entrevistas foram aplicadas com dez (10) membros do CSBHAJ. Para a escolha dos entrevistados, optou-se pelos membros mais antigos da entidade, valorizando assim, o conhecimento adquirido com a vivência, onde todos os membros escolhidos possuem dez anos ou mais de atuação no colegiado.
A discussão e análise dos resultados da pesquisa considerou os relatos contidos nos questionários e as abordagens dos autores escolhidos, em busca de obter uma visão geral do assunto e, assim, tecer as conclusões possíveis sobre a pesquisa.
Caracterização da Sub-Bacia Hidrográfica do Alto Jaguaribe
Segundo o Caderno Regional da Sub-Bacia Hidrográfica do Alto Jaguaribe, fruto do Pacto das Águas do Ceará2, esta bacia está limitada a oeste com o Estado do Piauí e ao sul com o Estado de Pernambuco, sendo, das cinco sub-bacias que compõem a bacia do Rio Jaguaribe (Banabuiú, Salgado, Alto, Médio e Baixo Jaguaribe), a que possui maior região hidrográfica do Ceará. A região abrange uma área de drenagem de 24.538 km², correspondendo a 16% do território cearense, iniciando nas nascentes do rio Jaguaribe e percorrendo uma extensão de 325 km até sua foz, no açude Orós (CEARÁ, 2009), conforme ilustrado na figura a seguir:
Figura 1 – Sub-Bacia Hidrográfica do Alto Jaguaribe.
Fonte: Adaptado de SRH (2016). (Disponível em: http://atlas.srh.ce.gov.br/)
Ainda segundo o Caderno Regional (CEARÁ, 2009), os principais afluentes do rio Jaguaribe neste trecho são os rios Carrapateiras, Trici, Puiú, Jucás, Condado, Cariús, Trussu e o riacho Conceição. A bacia é composta por 27 municípios, dos quais 23 estão integralmente dentro dela: Acopiara, Aiuaba, Altaneira, Antonina do Norte, Araripe, Arneiroz, Assaré, Catarina, Campos Sales, Cariús, Farias Brito, Iguatu, Jucás, Nova Olinda, Orós, Parambu, Potengi, Quixelô, Saboeiro, Salitre, Santana do Cariri, Tarrafas, Tauá; e 04 parcialmente: Caririaçu (9,90%), Crato (18,31%), Icó (1,61%), Várzea Alegre (18,57%).
A temperatura média anual fica em torno de 28°C e as altitudes nesta região variam, em média, entre 250 m e 400 m. A cobertura vegetal predominante é a caatinga, a qual se apresenta fortemente degradada e, em parte, destituída de suas condições originais, mesma situação das matas ciliares, nas planícies aluviais. Em alguns pontos da bacia, as evidências dos processos de desertificação já podem ser nitidamente constatadas (CEARÁ, 2009).
A maior parte do seu território possui clima semiárido, sendo que o período crítico com maior deficiência hídrica ocorre entre os meses de julho a novembro, com pequenas variações. As precipitações médias variam entre 500 mm e 700 mm ao ano, e as características geológicas da região limitam a perspectiva de reserva de água subterrânea, visto que a quase totalidade de sua área situa-se em rochas cristalinas de baixo potencial hídrico, contribuindo para o aumento do escoamento e da evaporação da água precipitada (GATTO, 1999).
Esta sub-bacia possui características de drenagem com regime intermitente sazonal, havendo escoamento nos rios e riachos somente na estação chuvosa, fora deste período os leitos dos rios permanecem secos, com exceção das áreas perenizadas artificialmente. A heterogeneidade de sua região pode ser percebida com a irregularidade na distribuição espaço temporal da precipitação, clima e vegetação das microrregiões que a compõem como Inhamuns, Cariri Oeste e Centro Sul (SRH, COGERH, 2016).
A bacia do Alto Jaguaribe apresenta grande capacidade de acumulação em termos de águas superficiais no Estado do Ceará, onde se pode destacar o açude Orós, responsável por 70% do total armazenado nesta Sub-Bacia chegando a contribuir com o abastecimento da região metropolitana da capital cearense, além dos açudes Roberto Costa, Arneiroz II e Canoas (SRH, 2016). A água de lagoas assume importância apenas em algumas áreas, destacando a lagoa do Baú e do Barro Alto, em Iguatu.
No Planejamento Estratégico dos Comitês de Bacias Hidrográficas do Estado do Ceará (2006) foi identificado que a sub-bacia do Alto Jaguaribe, apesar de apresentar expressivo volume de acumulação de águas superficiais, é considerada deficitária pela quantidade de trechos de rios perenizados, onde os grandes reservatórios estão no terço inferior da bacia, sendo caracterizada como uma região hidrográfica que forma nascentes do curso d’água principal.
Tratando-se de saneamento básico, de acordo com o Caderno Regional da Sub-Bacia do Alto Jaguaribe, os dados mostram um percentual de domicílios com abastecimento de água superior a 72%, já o esgotamento sanitário é muito precário, pois os domicílios com esgotamento ligado à rede estão em percentuais de baixos a nulos, verificando-se que a maioria deles não dispõem dessas instalações (CEARÁ, 2009).
Com relação às vocações econômicas, na região se destaca a pecuária, principalmente no município de Tauá, com maior representatividade da pecuária de grande e médio portes sem, no entanto, deixar de mencionar outros municípios detentores de grandes rebanhos como Acopiara, Aiuaba, Arneiroz, Iguatu, Icó, Parambu, Saboeiro e outros. Na agricultura temporária identifica-se o trio do arroz, formado pelos municípios de Icó, Iguatu e Quixelô e os maiores produtores de feijão e milho que são Acopiara, Assaré, Icó, Parambu e Tauá (CEARÁ, 2009).
Conforme Ribeiro (2009), a análise de uma bacia hidrográfica remete necessariamente à sua caracterização física como o solo e subsolo de sua área, o relevo, a vegetação e demais características que possuem nos leitos fluviais seu elemento integrador. Tais características, porém, estão intimamente relacionadas ao modo de utilização desses recursos, sendo socialmente definidas, constituindo uma dimensão política.
Para Cardoso (2003), ao reconhecer a bacia hidrográfica como unidade de planejamento e gestão, a legislação estabeleceu uma política participativa, instituindo um processo de tomada de decisão, que envolve diferentes agentes econômicos e sociais ligados ao uso da água dentro de um contexto que inclui uma nova visão dos poderes do Estado e os usuários. No estado do Ceará, assim como no âmbito nacional, foi adotado um discurso de participação ativa, onde os Comitês de Bacias Hidrográficas foram instituídos dentro da estrutura de gestão.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
O CSBHAJ foi criado por meio do Decreto do Governador do Estado do Ceará nº 26.6033, em 14 de maio de 2002, e instalado em 27 de junho do mesmo ano, por meio da reunião de instalação e posse dos membros do colegiado, no município de Iguatu, onde também foi eleita sua primeira diretoria executiva.
Trata-se de um órgão colegiado, de caráter consultivo e deliberativo composto por 40 instituições distribuídas com a seguinte divisão: 40% Sociedade Civil, 40% Usuários de Água, 20% Poder Público Municipal e 20% Poder Público Estadual e Federal.
A atuação do Comitê consiste, entre outros, em definir a alocação participativa das águas dos reservatórios que perenizam o leito do rio Jaguaribe, dirimir conflitos pelo uso da água, criar comissões específicas e deliberar sobre temas relevantes à gestão dos recursos hídricos da bacia. O processo de alocação negociada consiste na liberação das águas de um reservatório, considerando seu aporte e volume acumulado, para atender demandas de outras regiões e ocorre, geralmente, após o final da estação chuvosa de cada ano.
As decisões do colegiado são fundamentadas nos dados técnicos fornecidos pelo corpo de profissionais da COGERH, que exerce, entre outros, a função de secretaria executiva do Comitê. Além das informações necessárias às operações dos mananciais, a Companhia realiza um trabalho de apoio a organização social, entendendo que o processo de mobilização deve ser continuado, com ações de articulação, capacitação e construção de espaços de discussão e interação dos atores envolvidos, além de proporcionar a logística necessária para atuação dos entes colegiados (COGERH, 2016).
Para escolha da amostra da pesquisa foi adotado o critério de tempo de participação na instituição mencionada, onde todos os entrevistados possuem mais de dez anos de atuação. Foram realizadas dez (10) entrevistas, sendo nove (9) homens e uma (1) mulher, cuja proporção de gênero segue sua atual composição, conforme as tabelas 1 e 2:
Tabela 1 – Composição do CSBHAJ por proporção de gênero
GÊNERO |
PROPORÇÃO |
TOTAL |
Homens |
91% |
31 |
Mulheres |
9% |
4 |
Fonte: Elaboração própria (2016).
Tabela 2 – Amostra da pesquisa por proporção de gênero
GÊNERO |
PROPORÇÃO |
TOTAL |
Homens |
90% |
9 |
Mulheres |
10% |
1 |
Fonte: Elaboração própria (2016).
Com relação aos segmentos representados no Comitê, a amostra possui a seguinte representatividade: três (3) são usuários de água, três (3) da sociedade civil, dois (2) do poder público municipal e dois (2) do poder público estadual e federal. As tabelas 3 e 4, a seguir, fazem um comparativo dos segmentos representados na amostra com a composição do Comitê:
Tabela 3 – Composição do CSBHAJ por segmento representado
SEGMENTO |
PROPORÇÃO |
TOTAL |
Sociedade Civil |
33% |
10 |
Usuários de Água |
28% |
11 |
Poder Público Municipal |
17% |
6 |
Poder Público Estadual e Federal |
22% |
8 |
Fonte: Elaboração própria (2016).
Tabela 4 – Composição da Amostra por segmento representado
SEGMENTO |
PROPORÇÃO |
TOTAL |
Sociedade Civil |
33% |
3 |
Usuários de Água |
32% |
3 |
Poder Público Municipal |
22% |
2 |
Poder Público Estadual e Federal |
13% |
2 |
Fonte: Elaboração própria (2016).
Analisando as tabelas 3 e 4, pode-se perceber que o percentual de representantes por segmento da amostra utilizada possui relativa proporção com a composição do CSBHAJ. A semelhança da amostra sob os aspectos gênero e segmentos, fortalece, portanto, a representação desta em relação ao universo do Comitê.
É importante ressaltar que não foi traçado um perfil dos entrevistados, dada a heterogeneidade da composição da amostra, assim como do próprio Comitê. Entretanto, é válido mencionar que os membros contatados residem em diferentes municípios e, até aqueles inseridos no mesmo segmento, representam instituições de naturezas distintas.
Essa heterogeneidade de representação corrobora com os princípios da participação e descentralização da gestão dos recursos hídricos, estabelecida pela Política Estadual de Recursos Hídricos. Ao mesmo tempo, a diversidade de representantes pode revelar uma variedade de interesses, por vezes conflituosos entre si, característica que torna a ação desses atores ainda mais complexa, exigindo uma capacidade superior de negociação (JACOBI; FRACALANZA, 2005).
Com intuito de preservar a identidade dos membros, estes foram identificados de forma numérica, apresentando apenas o segmento que representam e a data de ingresso no colegiado. Inicialmente, os entrevistados foram questionados se o CSBHAJ cumpre suas atribuições previstas na legislação e o que contribui para este cumprimento. A maioria, 6 (seis) membros, responderam que o colegiado cumpre parcialmente seu papel e os outros 4 (quatro) membros afirmaram que o CSBHAJ cumpre suas atribuições. Sobre os fatores que contribuem para este cumprimento, foram mencionados a dedicação e participação ativa de membros do comitê, o trabalho realizado com instituições e entidades da sociedade civil e a participação da sociedade, conforme os relatos a seguir:
É o trabalho que é feito com as entidades, principalmente com as entidades não governamentais, é que tem dado um impulso muito grande na melhoria desse gerenciamento hídrico da bacia do alto (ENTREVISTADO 7).
[…] a sociedade em si, ela tá começando a assumir o seu papel de cidadão dentro da sociedade e isso faz com que os comitês, eles tenham essa vontade de uma autonomia maior (ENTREVISTADO 9).
Em seguida os entrevistados foram indagados sobre os fatores que dificultam e/ou interferem na atuação do comitê. As respostas apresentaram diversos argumentos como a dificuldade de participação de alguns membros, seja por falta de compromisso e interesse da instituição, pela distância dos municípios da bacia ou por falta de recursos:
[…] eu acho é a distância para os membros, o problema do transporte, porque a abrangência é muito grande, abrange vinte e quatro municípios e muitas vezes a gente deixa de frequentar algumas reuniões pela dificuldade de transporte (ENTREVISTADO 3).
[…] infelizmente os órgãos que muitos fazem parte não dão o menor incentivo, prefeituras que poderiam dar um incentivo maior, muitas delas não dão, e outros órgãos também que tem membros participante que não dá a menor ajuda para que se desloquem até o local das reuniões (ENTREVISTADO 6).
De acordo com informações da gerência regional de Iguatu, a COGERH é responsável pela arrecadação e aplicação dos recursos advindos da cobrança pela água bruta de domínio do Estado e, como secretaria executiva do comitê, também é responsável pela mobilização social de seus membros e por garantir a logística necessária ao funcionamento do colegiado.
Vale mencionar que a participação no comitê consiste um serviço de relevância pública, não havendo remuneração, e as instituições membros devem bancar os custos de participação nos eventos do colegiado, contando com o apoio da COGERH, que pode fornecer passagens de transporte regulamentado, mediante comprovação.
O processo de preenchimento das vagas do CSBHAJ ocorre a cada 4 (quatro) anos, no período normal de renovação dos membros, ou devido à vacância. Segundo o regimento interno do colegiado, a instituição perde o assento se faltar a três reuniões ordinárias seguidas, no período de 1 (um) ano. As vagas ociosas devem ser preenchidas por instituições do mesmo segmento, em uma reunião extraordinária aberta, havendo ampla mobilização das entidades da bacia pela secretaria executiva. A realização de todas as reuniões do comitê, ordinárias e extraordinárias, acontecem no município de Iguatu, sede da gerência regional da COGERH, por decisão do plenário do colegiado.
Para Jacobi (2006) a participação assume um papel importante na construção de uma cidadania ambiental, entretanto, não basta assegurar legalmente o direito de participação da sociedade, visto que o “[…] desinteresse e a frequente apatia da população com relação à participação é generalizada, resultado do pequeno desenvolvimento de sua cidadania e do descrédito dos políticos e das instituições” (p. 221-222).
Outra dificuldade relatada discorre sobre a falta de reconhecimento da importância do colegiado por parte do governo. Foi citada, ainda, a influência política em detrimento às deliberações do colegiado, causando descrença e afetando sua credibilidade:
Mas também tem a parte negativa do Governo em não valorizar e reconhecer a importância dos CBHs quando não atende nem responde os encaminhamentos dos CBHs, mas atende e resolve os problemas quando procurado por um político da região que não sabe e nem quer saber o que é comitê de bacia (ENTREVISTADO 1).
Isso nós estamos vendo ultimamente, nesse período de cinco anos de seca, que as decisões que o comitê toma o governo não acata e vem já de certa forma já impondo algumas resoluções sem o comitê muitas vezes nem saber que foram tomadas essas resoluções (ENTREVISTADO 6).
Sobre os relatos, uma publicação do Fórum Nacional de Comitês de Bacias Hidrográficas-FNCBH e da WWF Brasil (2005), aponta diversas fragilidades dos Sistemas de Gestão dos Recursos Hídricos, centradas na formação cultural que orienta a construção das políticas públicas no Brasil, essencialmente centralizadoras. Mesmo passando por mudanças significativas nas últimas décadas, tal herança influencia no fator de dependência que orienta a estrutura socioeconômica do país, estando, ainda, arraigada nas práticas institucionais.
Essa base cultural ainda presente na realidade das práticas institucionais do país, reforça a segmentação, a burocratização e a centralização das ações e deliberações. Para Campos e Fracalanza (2010, p. 378), “[…] mesmo com a descentralização administrativa ocorrida com a criação dos comitês de bacias, estes arranjos institucionais ainda carecem de poder decisório para efetivação de suas ações”.
Godoy (2007) defende que uma das consequências da descentralização da gestão hídrica consiste na interferência da política local, caracterizada essencialmente pelo clientelismo e a corrupção, que interfere na legitimidade das decisões, não sendo priorizadas aquelas estabelecidas pela comunidade. Para Godoy (2007), a participação e atuação dos entes colegiados fica fragilizada no momento em que as elites locais monopolizam os processos decisórios, ou quando a sociedade civil local não consegue estabelecer uma organização sólida e um espaço efetivo de participação.
Uma outra questão mencionada que interfere na atuação do comitê, foi a dependência do colegiado às instituições governamentais. Fracalanza, Jacob e Eça (2013) afirmam que as novas arenas participativas de gestão, incluídos nestas os comitês de bacias, apresentam vulnerabilidades que afetam seu potencial de intervenção nos processos decisórios, dentre as quais se pode destacar a dependência de tais instâncias à organizações mais tradicionais de gestão, que são detentoras das informações técnicas e dos recursos humanos e financeiros.
Fadul, Silva e Cerqueira (2011) consideram que o processo de institucionalização dos Comitês reflete nas fragilidades do seu poder decisório:
[…] a existência dos comitês de bacia parece refletir uma discussão apresentada por Meyer e Rowan (1991) quando tratam dos processos de institucionalização de práticas em organizações e, por extensão, nas sociedades. Para estes autores, algumas estruturas refletem muito mais o mito presente na própria sociedade do que a certeza de que estas são adequadas ao funcionamento daquela organização. Neste sentido, a estrutura (o comitê) serviria muito mais para uma tentativa de legitimação do governo, que demonstraria para a sociedade seu caráter democrático, do que a intenção real de tornar efetivo o controle das águas (FADUL; SILVA; CERQUEIRA, 2011, p. 16).
Outros fatores citados que prejudicam a atuação do CSBHAJ, foram as lacunas na legislação relativa ao ente colegiado e a falta de conhecimento e conscientização da sociedade. Por fim, foi considerado que a falta de conhecimento por parte dos membros do Comitê sobre as atribuições do colegiado, interferem na sua atuação, conforme o depoimento a seguir:
Falta aos membros dos comitês conhecimento do seu papel no âmbito da sua área de atuação, ou seja: fiscalizar a arrecadação e aplicação dos recursos oriundos da cobrança pelo uso da água; propor ao conselho de recursos hídricos do Ceará critérios e normas gerais para a outorga de uso da água e de execução de obras e serviços de oferta hídrica; estimular a proteção e a preservação dos recursos hídricos; aprovar o plano de gerenciamento de recursos hídricos da bacia; constituir grupos de trabalhos, comissões específicas e câmaras técnicas; definir os parâmetros de alocação de água para os açudes da bacia; discutir e aprovar, anualmente, em conjunto com a COGERH, o plano de operação dos sistemas hídricos da Sub-Bacia (ENTREVISTADO 10).
Seguindo com o questionário, os entrevistados foram indagados sobre o maior conflito já vivenciado, ou que ainda vivencia, o CSBHAJ. Três membros consideram que a escassez de água, de um modo geral, consiste no maior conflito da sub-bacia do Alto Jaguaribe:
A falta d’água. A falta d’água de forma geral e a distribuição que as vezes a população não entende, e a necessidade é maior do que o entendimento (ENTREVISTADO 2).
Eu acho que é a escassez de água. É um problema e tem todo um processo que isso acarreta, a falta de consciência da sociedade, a falta de planejamento dos gestores com a questão da qualidade da água, lixo, esgoto que compromete a qualidade e isso tudo é um problema a ser vivenciado e questionado (ENTREVISTADO 8).
A falta de conscientização da população e a alocação negociada das águas, uma prática metodológica adotada na gestão dos recursos hídricos do Ceará, também foram reportadas como causadoras de conflitos:
[…] o conflito maior que a gente vivenciou num modo geral é sempre a questão de alocação de água. Os mais fortes estão acontecendo até pelo fato de estarmos no quinto ano consecutivo de seca, a alocação de água, a briga pode-se dizer assim, que vem acontecendo na região do médio e baixo Jaguaribe. As duas bacias ali estão constantemente em situação de conflito pelo fato de termos a água muito escassa e muitos pretendentes, cada um querendo ver apenas o seu lado, olhar para o próprio umbigo (ENTREVISTADO 4).
O maior conflito é a conscientização dos usuários, tá certo, o pessoal hoje ainda não tem a conscientização de que a gente precisa realmente economizar água e que a gente precisa ter uma água de qualidade, entendeu, o pessoal ainda continua achando que a água é um bem infinito […] o maior conflito é você conseguir colocar na cabeça do usuário a importância da água, a importância de cuidar da água e a importância de economizar água (ENTREVISTADO 5).
Outros entrevistados acreditam que as imposições do governo, assim como a ausência de planejamento de suas ações, e a falta de recursos financeiros são os maiores conflitos vivenciados atualmente pelo CSBHAJ. Alguns conflitos de interesses envolvendo agentes municipais, empresas e os próprios usuários de água também foram mencionados.
Os relatos dos entrevistados representam suas percepções e interpretações dos acontecimentos na região hidrográfica, condicionados por suas vivências e experiências locais. Não existe, portanto, um consenso sobre o maior conflito pelo uso das águas na bacia do Alto Jaguaribe.
O questionamento seguinte discorre sobre a atuação do CSBHAJ na mediação dos conflitos relacionados aos recursos hídricos da sub-bacia. Os entrevistados relataram que o colegiado é muito atuante na mediação de conflitos, entretanto, alguns membros mencionaram dificuldades para efetivação dessa atribuição. Alguns entrevistados, contudo, acreditam que dificuldades relacionadas a questões estruturais do Comitê e a própria condição climática da região, interferem na atuação do colegiado, conforme as citações a seguir:
É um pouco difícil por que nós estamos atravessando cinco anos de seca, é muito difícil você diagnosticar uma coisa que é quase impossível por que remediar ou imediar, não sei, uma coisa que não existe, é difícil (ENTREVISTADO 2).
É claro que tem momento que não dá, né, tem momento que a gente é vencido pelo voto, é vencido pelo interesse maior, e a gente não consegue resolver o conflito de acordo com a necessidade da comunidade, mas pelo menos o comitê tá trabalhando numa melhor forma, tá trabalhando numa forma mais compartilhada desses conflitos (ENTREVISTADO 9).
Para Godoy (2007), os Comitês de Bacias Hidrográficas-CBHs são organismos compostos por uma diversidade de instituições e atores sociais, os quais possuem diferentes níveis de conhecimento e poder de decisão, cuja relação está pautada na defesa dos interesses setoriais e nas relações de poder. Estas, por sua vez, exercem influência nas ações do Comitê na busca por alternativas aos problemas apresentados pelas comunidades e no processo de negociação e administração dos conflitos.
Um dos membros relatou, ainda, que a mediação de conflitos pode ser fortalecida com a parceria de outras instituições:
A atuação é boa, apesar de que o comitê só ele fica fragilizado, seria muito importante nesses conflitos, como algumas vezes já aconteceu, o comitê solicita a presença do ministério público ou de qualquer outro órgão com mais destaque e facilita muito, mas o comitê realmente tem muito jeito, dá certo, ele tem uma didática muito boa pra resolver esses conflitos (ENTREVISTADO 5).
Gomes (et al., 2008) discorre sobre as limitações inerentes às atribuições dos comitês, que não possuem poder legal de fiscalização, a falta de conhecimento sobre sua atuação devido à ausência de mobilização social pelos seus membros, e a maior participação de alguns segmentos, geralmente os que possuem mais condições de acompanhar a agenda do ente, fortalecendo seus interesses em detrimentos de outros segmentos menos representados.
O último questionamento se refere à percepção dos entrevistados sobre como a atuação do CSBHAJ na mediação dos conflitos pode melhorar. O objetivo da pergunta foi tentar compreender os aspectos internos e externos que podem influenciar na atuação do colegiado, de modo a fortalecer e legitimar suas ações.
A maioria dos entrevistados mencionaram questões ligadas à participação das instituições do CSBHAJ. Os relatos discorrem sobre a dificuldade de transporte para os membros participarem das reuniões e grupos de trabalho, a falta de apoio do poder público local para viabilizar a participação de seus representantes, a falta de compromisso das entidades e a necessidade de apoio para as instituições que representam a sociedade e os usuários de água. Outras questões relacionadas à participação se referem à maior presença da comunidade nas reuniões do comitê e uma maior independência do colegiado. Também foi mencionado, como sugestão para melhoria da atuação do CSBHAJ, a valorização e reconhecimento do colegiado por parte do governo. Outras sugestões dos entrevistados para melhoria da atuação do comitê se refere à questões climáticas, com o fim deste ciclo de baixos índices pluviométricos, e a descentralização das ações do colegiado:
Seria um bom inverno, que aí acabaria o conflito, mas aí não depende do homem, do ser humano, depende de Deus (ENTREVISTADO 2).
[…] uma coisa que tinha que ser feito, mais descentralizado, não as reuniões, mas as ações, as ações do comitê ser mais descentralizada, porque eu acho muito centralizado na região Centro Sul (ENTREVISTADO 3).
Segundo Godoy (2007) existem aspectos positivos e negativos da descentralização da gestão dos recursos hídricos. Como pontos positivos a autora relembra que tal descentralização pressupõe uma abordagem mais sustentável dos recursos hídricos, visto que as decisões são tomadas em âmbito local, havendo uma abertura para a participação das comunidades nos processos decisórios, uma distribuição mais equitativa dos benefícios, além de considerar os conhecimentos e as experiências dos atores locais e as condições biofísicas, sociais e institucionais que influenciam na gestão das águas.
Os aspectos negativos se referem às estratégias da descentralização, onde ocorre a imposição de novas perspectivas sobre os recursos e se ignoram as regras já estabelecidas, assim como hábitos e culturas das comunidades locais, havendo, muitas vezes, o problema da interferência da política local, que faz com que as decisões não sigam as prioridades estabelecidas pela comunidade. Godoy (2007), ainda se remete a estudos que “[…] demonstram que os atores locais que recebem as novas responsabilidades geralmente não têm representatividade nem poder […]” (GODOY, 2007, p.10).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Analisando os relatos dos entrevistados pode-se afirmar que o CSBHAJ ainda enfrenta muitas dificuldades em sua atuação. A falta de compromisso e de apoio das instituições, a falta de recursos para se deslocar aos locais das reuniões, a dependência do colegiado às instituições governamentais e a interferência política foram questões mencionadas pelos entrevistados que interferem no funcionamento do Comitê.
Os dados coletados na pesquisa juntamente à análise das obras dos autores abordados permitem concluir que a descentralização e a participação consistem em processos muito mais complexos que a simples transferência de responsabilidades e a abertura de espaços para a sociedade. Fatores de caráter político, econômico e cultural tornam o processo mais complexo, onde se estabelecem relações de poder que devem ser trabalhadas e negociadas conjuntamente entre leigos e peritos. Segundo Godoy (2007), em qualquer instância de cunho participativo existem conflitos e negociações.
Para Godoy (2007), a abertura legal dos espaços de decisão é considerada um avanço, entretanto, não se pode afirmar que a implantação da estrutura de gestão dos recursos hídricos implicará na superação dos conflitos de interesses e na melhoria dos recursos. Segundo a autora:
[…] a gestão dos recursos hídricos nos comitês e agências de bacia precisa ser entendida como permeada por relações sociais, culturais, econômicas e de poder. Estas, por sua vez, influenciam as ações do comitê na busca de alternativas para os problemas de escassez e/ou qualidade da água e sustentabilidade de longo prazo através da criação de novas instituições, da administração dos conflitos que envolvem os múltiplos interesses em torno do acesso e uso das águas (GODOY, 2007, p. 13).
No caminho pela efetividade da atuação dos comitês de bacias, incluindo na mediação de conflitos, alguns aspectos devem ser considerados como a real participação da sociedade nas tomadas de decisão, a capacidade técnica dos seus membros, a assiduidade nas reuniões, o controle democrático da pauta das reuniões, fatores que podem influenciar na tomada de decisões e afetar o caráter deliberativo do colegiado.
Diante do exposto e como resultado da pesquisa, algumas propostas são apresentadas na tabela 5, baseadas nas sugestões dos membros entrevistados, como perspectivas para melhoria na atuação do CSBHAJ:
Tabela 5 – Perspectivas para melhoria da atuação do CSBHAJ.
ASPECTO |
SUGESTÃO |
Participação |
Criação de um Fundo que possa subsidiar as despesas dos membros no deslocamento às reuniões e eventos do Comitê |
Apoio financeiro, logístico e institucional das Prefeituras e Câmaras Municipais aos representantes do município no Comitê |
|
Sensibilização e apoio logístico das instituições membros para viabilizar a participação de seu representante no Comitê |
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Descentralização das reuniões e ações do Comitê como forma de fomentar a participação e proporcionar aos membros o conhecimento dos municípios da sub-bacia |
|
Aproximação com a Comunidade |
Atualização e utilização das mídias sociais e sítios eletrônicos do Comitê |
Descentralização das reuniões e ações do Comitê como forma de divulgar seu trabalho |
|
Capacitação |
Capacitação continuada sobre os assuntos relacionados aos recursos hídricos |
Valorização do Comitê pelo Governo |
Respeito e cumprimento das decisões do Comitê por parte das secretarias de governo |
Ampliação do diálogo entre os agentes governamentais e os membros do Comitê |
|
Clareza nas negociações e nas respostas às deliberações do Comitê |
Fonte: Elaboração própria (2016).
As dificuldades mencionadas pelos entrevistados revelam o desafio do gerenciamento de recursos hídricos pautado na descentralização, na integração e na participação, no âmbito da região hidrográfica do Alto Jaguaribe, pois, ainda que exista importância no papel a ser desempenhado pelo comitê, a sua eficácia parece estar, ainda, comprometida. Porém, apesar das dificuldades relatadas pode-se perceber nas entrevistas, também, o longo esforço empreendido pelos membros que, em quase 15 (quinze) anos de existência do CSBHAJ, participam ativamente das reuniões, grupos de trabalho e eventos.
A sinceridade contida nas críticas ao atual funcionamento do comitê foi acompanhada de sugestões em um discurso muito mais positivo, havendo uma perspectiva de superação das dificuldades. A perseverança dos entrevistados em participar do CSBHAJ demonstra que estes membros acreditam no propósito do comitê, de levar à esfera pública a necessidade das comunidades, dos não representados, de tornar a política um espaço aberto, plural e justo.
Os CBHs, como unidade de gestão, deveriam ser os espaços de produção de políticas públicas direcionadas à solução de problemas sociais, através da discussão com os diferentes níveis de governo e organizações da sociedade. As situações relatadas pelos membros do colegiado na bacia do Alto Jaguaribe revelam a necessidade de apoio técnico, investimentos que possibilitem a participação adequada, capacitação contínua dos representantes, ampla divulgação das ações do ente e efetividade e respeito às deliberações do colegiado. Os entraves técnicos, políticos, culturais, administrativos, gerenciais e institucionais da operacionalização plena do CSBHAJ devem ser conhecidos e superados, pois, o espaço tido como fórum de discussões, corre o risco de não cumprir com seu propósito maior.
Para Ribeiro (2009), apesar de a gestão participativa ser crescente no país, ainda há muito que avançar na obtenção de consenso, tanto na forma, quanto na qualidade de suas decisões. Para isso, é preciso instituir a governabilidade dos recursos hídricos, ou seja, as condições sistêmicas mais gerais sob as quais se dá o exercício do poder, ou ainda, as condições do exercício da autoridade política. É necessário atribuir maior atenção a esses fatos, no sentido de minimizar e até eliminar as assimetrias existentes, superando os obstáculos institucionais e técnico burocráticos, na busca e defesa de uma participação ativa da comunidade, visando a consolidação plena da participação social.
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ANEXO 1
Questionário – Comitê da Sub-Bacia Hidrográfica do Alto Jaguaribe
(Aplicado nos dias 11 de agosto e 04 de outubro de 2016)
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» Questionário
1. Nome
2. Segmento que representa no Comitê
3. Possui quanto tempo de Comitê?
4. Na sua opinião, o Comitê cumpre suas atribuições previstas em lei? O que contribui para o cumprimento?
5. Caso não cumpra, o que impede/dificulta o cumprimento das atribuições?
6. Na sua opinião, qual o maior conflito que vivenciou, ou ainda se vivencia nesta Bacia Hidrográfica?
7. Como você percebe a atuação deste Comitê na mediação de conflitos?
8. Caso seja preciso, o que pode melhorar na atuação do Comitê?